“Salário é o pagamento por serviços prestados; ordenado, vencimentos”.[1]
Refletindo sobre tudo o que o salário representa, conclui-se que não é apenas uma contraprestação pelo trabalho prestado. Possui clara função social, a qual se sobrepõe à função econômica, ultrapassando o aspecto valorativo entre empregador e empregado para alcançar o bem-estar social, o que reflete o princípio basilar da Constituição Federal vigente – Dignidade da Pessoa Humana.
Histórico necessário
Desse modo, ao longo do tempo e para proteger o indivíduo que provê sua própria subsistência, o salário, em geral, passou a receber proteção especial, o que fez constar na lei expressamente a proibição de que ocorra sua penhora para o pagamento de dívidas, conforme previsão no antigo Código de Processo Civil (CPC) de 1973.
Anteriormente, no diploma processual de 1939, a proteção do salário era restrita a poucos, pois alcançava apenas os vencimentos dos magistrados, professores, funcionários públicos e militares.
Nesse sentido, a proteção ampliada trazida pelo diploma processual anterior (de 1973) foi mantida no atual CPC, vigente desde 2015, com nuance técnica que diferencia os textos legais e acaba permitindo uma flexibilização da proteção, conforme será demonstrado abaixo.
No CPC atual:
“Art. 833. São impenhoráveis:
(…)
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;
(…)”
A nuance técnica trazida pelo atual CPC foi a de que, embora tenha mantido a impenhorabilidade do salário, não trouxe a expressão “absolutamente” após impenhoráveis ao abrir o artigo que trata do assunto.
Em que pese se tratar de simples remoção da palavra “absolutamente”, tal mudança pode ter contribuído para uma nova interpretação pelos tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que, em tese, a lei não contém palavras inúteis.
FLEXIBILIZAÇÃO PELO STJ
Como vimos, a impenhorabilidade do salário possuía caráter absoluto, sem margens para desdobramentos da sua penhora para o pagamento de dívidas não previstas expressamente na lei, mas com o novo texto que não trouxe a expressão “absolutamente impenhoráveis”, acabou dando margem para nova interpretação dos julgadores, possibilitando a sua relativização e possibilidade de penhora de, no máximo, 30% do salário para o pagamento de dívidas.
Ao julgar um caso em março de 2019, o STJ firmou entendimento de que a regra geral da impenhorabilidade de salários pode ser afastada quando o devedor possuir salário que assegure a sua subsistência e de sua família (ERESP 1582475).
Em outro processo[2], a Corte Especial do STJ permitiu a penhora de parte do salário do devedor para o pagamento da dívida, mesmo essa não sendo prevista no texto de lei.
TRIBUNAIS ADOTAM ENTENDIMENTO DO STJ
Abaixo trazemos três casos recentes julgados por tribunais estaduais que adotaram esta nova interpretação lançada pelo STJ.
1. O Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu a penhora de 10% do salário de um chefe de cozinha que recebe salário de R$ 10.000,00 para o pagamento de sua dívida de empréstimo bancário:
Execução de título extrajudicial (mútuo entre particulares assinado por duas testemunhas). Pretensão de penhora parcial de salário. Inadmissibilidade, como regra, da penhora de verbas alimentares (art. 833, inc. IV, do NCPC). Possibilidade de flexibilização da regra geral da impenhorabilidade, além das exceções legais (art. 833, § 2º, do NCPC), desde que viável a constrição, respeitada a dignidade do devedor e sua família, conforme precedente da Corte Especial do C. STJ (Embargos de Divergência em REsp nº 1.582.475-MG, DJe 16/10/2018, Rel. Min. Benedito Gonçalves). Possibilidade de penhora do percentual de até de 30% da remuneração/aposentadoria, que não é baliza fixa. Relativização da impenhorabilidade. Análise pragmática e pontual. Dívida oriunda de empréstimo para abertura de restaurante. Agravado que se retirou do negócio, deixou de pagar as parcelas mensais do empréstimo e atualmente é chefe de cozinha contratado em empresa hoteleira, auferindo renda média líquida de R$ 10.000,00 mensais. Penhora sobre 10% da remuneração líquida que não irá violar a sua dignidade ou de sua família. Manutenção do padrão médio de vida. Decisão agravada reformada para deferir a penhora. Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2202525-73.2019.8.26.0000; Relator (a): Tasso Duarte de Melo; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 34ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/02/2020; Data de Registro: 10/02/2020)
2. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal autorizou a penhora de parte do salário para o pagamento de dívida:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO E AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENHORA DE VALORES. PEDIDO DE PENHORA DE PERCENTUAL DE SALÁRIO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VALOR BLOQUEADO. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE DE AFRONTA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO DEVEDOR. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA MANTIDA. ANÁLISE CASO A CASO. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS. POSSIBILIDADE DE PENHORA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. 1. O art. 833, inciso IV, § 2º do CPC orienta no sentido de ampliar a eficácia das normas fundamentais do processo civil, sobretudo para possibilitar o cumprimento das obrigações, com a penhora de conta salário e também do próprio salário, devendo os pedidos ser analisados caso a caso, ponderando-se com os demais princípios sensíveis. 2. No caso concreto, a penhora requerida não possui, a princípio, a potencialidade de afrontar direitos fundamentais do devedor, como a dignidade da pessoa humana, uma vez que o valor recebido pelo devedor é de grande monta, mesmo em se considerando a remuneração bruta. 3. Agravo interno desprovido. Agravo de instrumento provido. (Acórdão 1163512, 07002185420198070000, Relator: ALFEU MACHADO, 6ª Turma Cível, data de julgamento: 3/4/2019, publicado no DJE: 11/4/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENHORA DE SALÁRIO OU VENCIMENTO. FLEXIBILIZAÇÃO DA REGRA DO ART. 833, IV DO CPC. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. TJDFT. STJ. 1. Os rendimentos do devedor são, em regra, impenhoráveis (art. 833, inciso IV do CPC/15). Todavia, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que a regra geral da impenhorabilidade de salários pode ser relativizada, com observância de percentual que assegure a dignidade do devedor e de sua família (EREsp 1582475/MG). 2. No mesmo sentido: AgInt no AREsp 1408762/AM, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 11/06/2019, DJe 28/06/2019; Acórdão nº 1186271, 07022563920198070000, Relator Desembargador José Divino 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 17/07/2019, Publicado no DJE: 25/07/2019. 3. Recurso conhecido e provido. (Acórdão 1297736, 07252338820208070000, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, , Relator Designado:DIAULAS COSTA RIBEIRO 8ª Turma Cível, data de julgamento: 29/10/2020, publicado no DJE: 12/11/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
DEVAGAR COM O ANDOR…
Como se vê, embora tenha se tornado possível a penhora de parte do salário para o pagamento de dívidas, tal medida só tem sido adotada em casos excepcionais, quando o Judiciário e o credor esgotaram todas as vias para a obtenção do crédito, tais como dinheiro, imóveis, móveis e automóveis (art. 835, do CPC), e desde que a penhora não viole a dignidade da pessoa humana e impossibilite o seu sustento e de sua família.
Ainda, pode-se dizer que se vislumbra o bom senso nas decisões verificadas, já que se mostram situações nas quais os devedores detêm condições de honrar as dívidas e não o fazem em prejuízo aos interesses dos credores que, muitas vezes, dependem igualmente dos valores devidos para o seu sustento, como é o caso dos honorários profissionais.
Caso tenha interesse em se aprofundar mais no tema, inclusive saber as exceções da lei onde o salário pode ser penhorado, recomendamos a leitura deste outro artigo.
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[1] Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss
[2] Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.518.169/DF.
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