A locação de veículos automotores chegou para ficar. O que demonstra isso é que esse mercado de serviço de locação vem crescendo a cada ano, atraindo não só os motoristas de aplicativos, como também o público que não tem necessidade de possuir um veículo próprio, até mesmo aqueles que optaram por uma nova modalidade de contratação de locação de veículos, popularmente chamada de ‘carro por assinatura’.
Segundo artigo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)[1], a Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (ABL) registrou aumento das locações de veículos no Brasil que conta com 69,3 milhões de usuários, em 2022, número superior em 38,3% e 55,4%, em relação a 2021 e 2020, respectivamente.
Dentro deste contexto e a partir de uma consulta formulada por cliente, resolvemos abordar situação que pode chegar ao Judiciário em razão de conflito envolvendo o uso de veículo alugado: a retomada do veículo pelas locadoras por meio de medidas controversas e muitas vezes abusivas.
No entanto, desde já necessário esclarecer que a locadora pode exercer o seu direto à retomada do veículo pela via extrajudicial, conforme previsto no artigo 1.210, § 1º, do Código Civil, o que responde a pergunta que dá título a este artigo. Logo, a lei assegura à locadora a possibilidade de retomar a posse do veículo por meios próprios, sem a necessidade de prévia autorização judicial.
Ainda, além do referido artigo do Código Civil, geralmente, os contratos das locadoras reforçam a possibilidade da retomada do veículo, acaso o locatário descumpra determinadas regras previstas.
Certo! Mas e se a busca e apreensão/retomada do veículo se deu de forma constrangedora e abusiva?
Posso ser indenizado?
Qual o limite para a atuação das locadoras de modo a não ferir o direito dos locatários?
Em que pese a possibilidade da locadora de exercer o seu direto para reaver o veículo, não lhe é concedido o direito de exercê-lo da forma que bem entender e ao seu próprio critério, pois, se expuser o locatário a vexame, humilhação ou constrangimento, poderá ser processada e condenada por danos morais.
Imagine a seguinte situação: você alugou um veículo por prazo determinado e por um imprevisto não pôde entregá-lo na data prevista no contrato. De repente, sem qualquer aviso por parte da locadora você é surpreendido por representante da locadora com um guincho em sua residência, trabalho, restaurante, rodovia, viagem ou em qualquer outro lugar em que você esteja para retomar o veículo aos olhos de todos ali presentes.
Ou pior, você segue à risca todos os termos do contrato (contrato vigente, dentro do prazo para devolução, pagamento realizado, etc.) e por uma falha no sistema da locadora (evidente defeito na prestação de serviço) a locadora se dirige ao local em que se encontra o veículo para retomá-lo.
Pois bem, seja pelo fato de que o locatário não tenha observado o prazo previsto no contrato para devolução do veículo, pelo descumprimento de outras previsões contratuais, ou até mesmo por falha na prestação do serviço da própria locadora, como informação no seu sistema referente à data de entrega, renovação ou registro de pagamento, por exemplo, verificada a retomada de forma humilhante e que cause danos de ordem moral ao locatário, a locadora poderá ser responsabilizada e condenada ao pagamento de indenização por danos morais.
A fim de ilustrar esse cenário, trouxemos algumas decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP):
- Locação de bem móvel. Ação de rescisão contratual c.c. indenização por danos morais. Embora o contrato entre as partes preveja que, em caso de não devolução do veículo na data aprazada, haveria cobrança dos valores correspondentes ao tempo adicional em que permaneceu na posse do locatário, sem menção à possibilidade de apreensão, o art. 1.210, § 1º, do Código Civil assegurava à locadora a possibilidade de retomar a posse do veículo por meios próprios, sem necessidade de prévia autorização judicial. Desta forma, a recuperação do veículo por prepostos da requerida não constitui, por si só, ato ilícito ou exercício arbitrário das próprias razões. As condições particulares da apreensão, porém, evidenciam que se deu de forma constrangedora para a requerente, o que justifica a indenização por dano moral imposta na origem. Aplicação analógica do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, os elementos coligidos evidenciam que a conduta da autora não se revestiu de toda a cautela, diligência e proatividade relatadas na petição inicial, ou seja, houve também de sua parte certa desídia e acomodação, que culminaram, ao cabo, com a apreensão do veículo, o que deve ser levado em conta no arbitramento da indenização por danos morais, a teor do que dispõe o art. 945 do Código Civil. Indenização reduzida para R$ 5.000,00. À míngua de prova inconteste de que a devolução era impossível, deve ser afastada a declaração de inexigibilidade das diárias de locação posteriores ao dia 18.03.2020, até porque a autora permaneceu na posse do veículo e o utilizou. Isentá-la do pagamento do aluguel até a efetiva retomada do bem não só transfere todo o ônus dos problemas causados pela pandemia para a requerida, como dá ensejo a locupletamento indevido da requerente. Apelo da ré parcialmente provido e recurso adesivo da autora improvido. (TJSP; Apelação Cível 1012476-55.2020.8.26.0001; Relator (a): Gomes Varjão; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2023; Data de Registro: 18/03/2023)
- AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. LOCAÇÃO DE VEÍCULO. Gratuidade da Justiça. Pessoa física. Autor que demonstrou súbita alteração em sua situação financeira. Benefício deferido. Ré que, após entregar equivocadamente outro veículo ao autor, de mesmo modelo, passou a efetuar cobranças por diárias já pagas. Contrato integralmente quitado, de forma antecipada. Inexistência de pendências financeiras. Retomada do veículo pela ré, de forma injustificada, antes do termo do período de locação que, ademais, acarretou a cobrança indevida de taxa de retirada do veículo (guincho), multa e outros encargos. Danos morais caracterizados. Autor que ficou desprovido de meio de transporte, durante viagem ao Estado de Paraíba, para celebrar seu casamento. Situação que ultrapassou o mero dissabor. Quantum bem fixado na origem. Indenização por danos morais que merece ser mantida em R$10.000,00, por ser quantia que se mostra razoável e proporcional no caso concreto. Danos materiais comprovados. Despesas com transporte decorrentes da retomada do veículo. Alegação genérica da ré de que agiu no exercício regular do direito em razão de não pagamento de débito, sem, contudo, especificar do que se tratava a inadimplência. Relação consumerista. Falha na prestação dos serviços. Responsabilidade configurada. Partes que avençaram valor total por período de 30 dias. Devolução que deve ser proporcional aos dias não utilizados (16 dias) levando em consideração o valor do período avençado. Sucumbência mínima do autor. Redistribuição dos ônus sucumbenciais, na forma do parágrafo único, do art. 86, do CPC. Recurso da ré desprovido, parcialmente provido o do autor. (TJSP; Apelação Cível 1020038-35.2022.8.26.0005; Relator (a): Milton Carvalho; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional V – São Miguel Paulista – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/10/2023; Data de Registro: 31/10/2023)
- Locação de bem móvel. Ação de rescisão contratual c.c. indenização por danos morais. Embora o contrato entre as partes preveja que, em caso de não devolução do veículo na data aprazada, haveria cobrança dos valores correspondentes ao tempo adicional em que permaneceu na posse do locatário, sem menção à possibilidade de apreensão, o art. 1.210, § 1º, do Código Civil assegurava à locadora a possibilidade de retomar a posse do veículo por meios próprios, sem necessidade de prévia autorização judicial. Desta forma, a recuperação do veículo por prepostos da requerida não constitui, por si só, ato ilícito ou exercício arbitrário das próprias razões. As condições particulares da apreensão, porém, evidenciam que se deu de forma constrangedora para a requerente, o que justifica a indenização por dano moral imposta na origem. Aplicação analógica do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, os elementos coligidos evidenciam que a conduta da autora não se revestiu de toda a cautela, diligência e proatividade relatadas na petição inicial, ou seja, houve também de sua parte certa desídia e acomodação, que culminaram, ao cabo, com a apreensão do veículo, o que deve ser levado em conta no arbitramento da indenização por danos morais, a teor do que dispõe o art. 945 do Código Civil. Indenização reduzida para R$ 5.000,00. À míngua de prova inconteste de que a devolução era impossível, deve ser afastada a declaração de inexigibilidade das diárias de locação posteriores ao dia 18.03.2020, até porque a autora permaneceu na posse do veículo e o utilizou. Isentá-la do pagamento do aluguel até a efetiva retomada do bem não só transfere todo o ônus dos problemas causados pela pandemia para a requerida, como dá ensejo a locupletamento indevido da requerente. Apelo da ré parcialmente provido e recurso adesivo da autora improvido. (TJSP; Apelação Cível 1012476-55.2020.8.26.0001; Relator (a): Gomes Varjão; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2023; Data de Registro: 18/03/2023)
- LOCAÇÃO DE VEÍCULO. Pedido de purgação de mora e indenização por danos morais. Locadora que não logrou demonstrar as tentativas frustradas de lançamento do débito no cartão de crédito da autora e que tampouco respondeu à mensagem da locatária disponibilizando-se a quitar a dívida. Rescisão contratual por culpa da empresa ré. Retomada arbitrária da posse do veículo de forma extrajudicial e sem aviso prévio. Danos morais configurados. Indenização mantida em R$5.000,00 tendo em vista os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Fundamentos da sentença não infirmados. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1001424-33.2021.8.26.0549; Relator (a): Milton Carvalho; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santa Rosa de Viterbo – Vara Única; Data do Julgamento: 09/09/2022; Data de Registro: 09/09/2022)
- LOCAÇÃO DE MÓVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sentença de procedência em parte. Apelo da ré. Autor que conduzia em rodovia o veículo locado da ré quando houve o bloqueio e recolhimento do carro pelo guincho da ré. Autor que foi deixado na estrada e precisou retornar a pé até o centro da cidade e voltar de ônibus para o local de sua residência. Defesa da ré que reitera inúmeras vezes que o autor descumpriu o contrato, mas não esclarece qual fora o motivo. Locação por quilometragem livre sem qualquer impedimento à circulação dentro do território nacional. Bloqueio e recolhimento do veículo que impediu que o contratante usufruísse do serviço para o fim a que se destinava, nos termos do artigo 20, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Falha na prestação de serviços da qual decorre a responsabilização da ré à reparação por danos materiais e morais. Dano moral configurado. Valor da indenização mantido em R$ 7.000,00. Razoabilidade e proporcionalidade. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1002630-92.2022.8.26.0405; Relator (a): Alfredo Attié; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Osasco – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/06/2022; Data de Registro: 29/06/2022)
Conclusão
Como as decisões bem demonstraram, diante do descumprimento do contrato por parte do locatário a locadora pode realizar a busca e apreensão/retomada do veículo, sem, contudo, agir de forma que exponha o locatário a vexame, humilhação ou constrangimento.
Acaso não tenha havido descumprimento do contrato por parte do locatário para a busca e apreensão/retomada do veículo, portanto, constatada a falha na prestação de serviço da locadora, esta deverá ser responsabilizada por danos morais, materiais e lucros cessantes, se houver.
Por fim, esclarecemos que cabe a um advogado da sua confiança analisar o contrato, todos os fatos e desdobramentos para verificar a viabilidade de uma ação judicial para que os seus direitos sejam rigorosamente respeitados, ainda mais que, no caso concreto, a linha que separa o mero exercício de um direito de retomada do veículo e o abuso do direito pode ser muito tênue.
[1] https://portal.fgv.br/artigos/aumento-locacoes-veiculos-brasil