Um homem endividado ingressou com ação de repactuação das suas dívidas com base na Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), alegando que 95% de sua renda foram comprometidos com empréstimos consignados e pessoais, restando-lhe tão somente R$ 233,15 para arcar com as despesas inerentes à subsistência.
Em primeira instância o processo foi julgado improcedente sob os seguintes fundamentos:
a) os contratos consignados não se inserem na possibilidade de renegociação (art. 4º, p. único, I, h, do Decreto nº11.150/2022);
b) a renda do autor, após os descontos das obrigações, é superior a R$ 600,00, transbordando o mínimo existencial (Decreto nº 11.150/2022, com redação dada pelo Decreto nº 11.567/2023);
c) a proposta apresentada pelo autor estabelece prazo de pagamento das obrigações superior a 5 (cinco) anos (art. 104-B, §4º, CDC).
Diante da negativa, o autor não se conformou e recorreu da decisão.
Mas antes de abordarmos o que o tribunal decidiu sobre o recurso do autor, importante destacar que o tratamento de situações de superendividamento, com o escopo de preservar o mínimo existencial, foi previsto pela Lei nº 14.181/2021, alterando o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, conforme abordamos à época neste artigo.
O que seria o mínimo existencial?
Trata-se do conjunto de condições mínimas necessárias a um indivíduo para sobreviver com dignidade, assegurando sua habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico.
A preservação do mínimo existencial tornou-se um direito básico do consumidor:
“São direitos básicos do consumidor: (…) XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito” (art. 6º, XII, CDC).”
De acordo com art. 54-A, §1º, do CDC, “entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.”
Voltando ao que decidiu o tribunal[1], em que pese a decisão de primeira instância ter afastado os consignados para apuração da dívida do autor, o desembargador entendeu de forma diversa ao estabelecer que o superendividamento abrange quaisquer compromissos financeiros decorrentes de relação de consumo: “As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada” (art. 54-A, §2º, CDC).
Ainda, o julgador afirmou que, de fato, o Decreto nº 11.150/2022 dispõe que as operações de crédito consignado regidos por lei específica serão desconsideradas para efeitos de averiguação do mínimo existencial, em manifesto confronto entre as normas, considerando que o Código de Defesa do Consumidor dispõe que todas as dívidas de relação de consumo devem ser consideradas para efeito de averiguação de superendividamento (artigo 54-A, §2º, CDC).
Nesse contexto, o magistrado enfatizou o princípio da hierarquia das normas, onde deve prevalecer a lei federal, que está acima do decreto.
Com relação ao valor previsto no decreto, correspondente a R$ 600,00, afirmou o relator que “evidentemente não é suficiente, sendo apenas uma mera referência, pois o Decreto nº 11.150/2022 não previu nenhuma forma de correção monetária do valor, não abordando a questão da variação de preço dos produtos e dos serviços apurados pelo IBGE por meio do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) e do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor).”
Complementou o relator que o valor médio da cesta básica na cidade de São Paulo, em 2024, apurado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos Dieese, no importe de R$ 800,00.
Por fim, o relator destacou que não se pode esquecer a responsabilidade das instituições financeiras e de outros na concessão de crédito, conforme previsto no art. 54 do CDC[2].
No caso, o autor é titular do cargo efetivo de agente penitenciário, com a remuneração base de R$ 5.453,33. O autor possui descontos mensais de empréstimos consignados em folha de pagamento superiores a R$ 2.000,00. Considerando todos os descontos em folha de pagamento, o autor recebe a quantia líquida de R$ 1.905,00. Todavia, o autor possui também empréstimos pessoais não consignados, com parcelas mensais superiores a R$ 1.600,00, restando apenas R$ 233,00, que comprometem o mínimo existencial.
Dessa forma, o relator deu provimento ao recurso do autor para determinar a instauração da fase de revisão e integração dos contratos, com a repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório, respeitando-se o mínimo existencial de um salário-mínimo líquido com observância aos reajustes oficiais.
Finalizamos esse artigo com a reflexão de que o Direito se mostra dinâmico, havendo casos cujos desfechos se mostram diversos daqueles que se têm como esperados, a partir dos critérios objetivos e determinados previstos em lei.
[1] TJSP – Acórdão nº 1001826-84.2023.8.26.0407
[2] Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I – Informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II – avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção dedados;
III – informar a identidade do agente financiador e entregara o consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.