Desde a ocorrência do acidente com morte envolvendo o Porsche dirigido por Fernando Sastre de Andrade Filho que acabou atingindo a traseira do Sandero dirigido por Ornaldo da Silva Viana, muito se tem falado sobre as investigações.
O infortúnio aconteceu no dia 31 de março, na zona leste da Capital e Fernando é réu por homicídio por dolo eventual, lesão corporal e fuga do local do acidente. Ele responde aos crimes em liberdade e desde então três pedidos de prisão foram negados pela Justiça.
Apesar disso, medidas restritivas foram impostas a ele e destacamos duas que se referem ao seu amigo Marcus Rocha, que estava na carona do veículo: (i) pagamento de fiança de R$ 500 mil para garantir uma eventual reparação (ao amigo e à vítima fatal) e (ii) proibição de aproximação do amigo ferido.
Conforme trecho de reportagem do Portal G1, “a namorada do amigo disse também que, na hora de irem embora, viu a namorada de Fernando discutir com ele porque o rapaz estava “alterado”. E que Marcus se ofereceu para dirigir o Porsche para ele, mas Fernando não deixou. Então, Marcus foi no banco do carona do carro de luxo, que foi guiado por Fernando. E a namorada de Fernando acabou indo com ela em outro carro”. (destaques nossos).
O amigo que estava no banco do carona é importante peça do quebra-cabeça da investigação, não só pelo testemunho, mas pelos desdobramentos que podem advir da conclusão da investigação e do processo na Justiça.
Aqui destacamos a responsabilidade de quem dirige um veículo, dá carona e se envolve em acidente.
O ato de dar carona se enquadra no que se chama de “transporte de cortesia ou transporte desinteressado” e, ao contrário do que o senso comum pode indicar, o condutor assume o dever de zelo do transportado, devendo, por exemplo, assumir o risco de ocorrências relacionadas à falta de manutenção do veículo e a ausência do uso do cinto de segurança.
No binômio acidente e carona, para que possa ser caracterizada a responsabilidade do condutor, devem estar presentes: (i) o transporte de cortesia (efetivamente uma carona), (ii) o dano (a exemplo do dano moral, dano material, dano estético e/ou dano físico) e (iii) a culpa grave do condutor.
Inclusive a premissa a ser examinada e fixada pelo juiz é a caracterização de carona. Confirmada que a vítima estava no veículo sob as regras de transporte de cortesia, passa-se ao exame dos demais elementos.
No acidente que vitimou fatalmente o motorista de aplicativo, no Porsche estava o amigo do condutor no banco do carona. Com o que já foi noticiado, temos: (i) o transporte de cortesia pode ficar caracterizado; (ii) o amigo sofreu ferimentos (danos configurados) e (iii) a depender da investigação e do processo, a culpa grave do condutor pode ficar demonstrada.
Com esse trio de configurações, nasce o dever de indenizar do condutor ao amigo transportado como carona.
Para ilustrar ainda mais a responsabilidade de quem dá carona, trazemos alguns casos julgados pelo tribunal paulista.
No primeiro caso, o tribunal, inclusive, elencou ações (ou omissões) do condutor que se portou de forma irresponsável desde o início do transporte: aceitou transportar mais pessoas do que a capacidade do veículo (excesso de pessoas), permitiu que viajassem sem o cinto de segurança, algumas pessoas eram menores de idade e, conforme a investigação, o condutor estava alcoolizado. Esta somatória culminou com a ocorrência do acidente e provocou sofrimento e danos às pessoas que foram irresponsavelmente transportadas:
APELAÇÃO – RECURSO DO RÉU – AÇÃO CONDENATÓRIA – ACIDENTE DE TRÂNSITO – TRANSPORTE DE CORTESIA – SÚMULA 145 DO C. STJ – CULPA GRAVE CARACTERIZADA – NEGLIGÊNCIA EXAGERADA DO RÉU – DANOS ESTÉTICOS – CABIMENTO – VALORAÇÃO MANTIDA – DANOS MORAIS – CABIMENTO – VALORAÇÃO MANTIDA – PEDIDO DE REDUÇÃO – REJEIÇÃO – RECURSO DO RÉU NÃO PROVIDO 1 – O transporte de cortesia ou desinteressado atrai regramento distinto no tocante à responsabilidade civil, de modo que o transportador só responde pelos danos causados a título de dolo ou culpa grave. Súmula 145 do C. STJ. Doutrina e jurisprudência. Considerações sobre a permanência do verbete mesmo com o advento do novo Código Civil. 2 – No caso, as provas coligidas apontam para culpa grave do réu. Provavelmente alcoolizado, segundo conclusão da autoridade policial, o réu desde o início conduziu a situação de forma temerária, transportando seis passageiros (excesso ilícito), três deles menores de idade, de madrugada, em direção a outro município, aceitando que a maioria não utilizava cinto de segurança, desídia que culminou no capotamento, sozinho, do veículo. Culpa grave evidenciada (CC, art. 186 e 927). 3 – Os danos estéticos estão caracterizados, dada a pluralidade de cicatrizes expressivas (uma delas com 13 cm e outra na região dos lábios). Os valores fixados na origem são aquém do efetivamente devido (cinco mil reais), porém, devem ser mantidos pela vedação da reforma prejudicial. 4 – Os danos morais estão caracterizados, uma vez que a autora Ágata foi submetida a um cenário aflitivo, com cirurgia, internação hospitalar por quase duas semanas, tratamento médico por três meses, além da dor ínsita ao acidente. Valor fixado em dez mil reais que é igualmente aquém ao devido, segundo precedentes citados, porém, deve ser mantido pela vedação da reforma prejudicial. 5 – A teoria do inferno da severidade (CC, art. 944, parágrafo único) não vem ao caso, pois o montante indenizatório não comprometerá a sobrevivência do réu, além da constatação de que a valoração feita na origem já foi aquém do devido. Redução não acolhida. RECURSO DO RÉU NÃO PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1003731-27.2021.8.26.0268; Relator (a): Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itapecerica da Serra – 4ª Vara; Data do Julgamento: 24/11/2023; Data de Registro: 24/11/2023). (Grifos e destaques nossos).
No caso abaixo, conforme constou, o condutor da motocicleta que se envolveu em acidente estava alcoolizado, sendo que houve relato de embriaguez também da passageira. Neste caso, mesmo eventual embriaguez da passageira não serve para afastar a responsabilidade do condutor:
APELAÇÃO – AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS, MORAIS E ESTÉTICOS – APELANTE QUE PEGOU CARONA NA GARUPA DA MOTOCICLETA DIRIGIDA PELO APELADO – RECORRIDO QUE PERDEU O CONTROLE DO VEÍCULO E CAUSOU A QUEDA DAS PARTES – APELADO QUE DIRIGIA A MOTOCICLETA EMBRIAGADO – VEÍCULO EM MAU ESTADO DE CONSERVAÇÃO – CULPA GRAVE DO APELADO (SÚMULA Nº 145 DO C. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA) – REQUERIMENTO DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL E PERICIAL PARA AFERIÇÃO DA EXISTÊNCIA DE CULPA CONCORRENTE OU EXCLUSIVA DO RÉU, ASSIM COMO PARA APURAR A EXTENSÃO DOS DANOS – R. SENTENÇA QUE JULGOU O FEITO IMPROCEDENTE DE FORMA ANTECIPADA – CERCEAMENTO DE DEFESA CONFIGURADO – R. SENTENÇA ANULADA. 1. No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave (Súmula nº 145 do C. Superior Tribunal de Justiça). 2. Apelado que dirigia motocicleta embriagado, conforme constatado pelos Policiais Militares – agentes públicos dotados de fé pública – que atenderam à ocorrência. 3. Eventual embriaguez da passageira, ora apelante, que não elide a responsabilidade civil do motorista, ora apelado. 4. Documentos que não demonstram que a apelante tinha prévia ciência de que o apelado estava embriagado quando aceitou a carona. 5. Requerimento tempestivo de prova testemunhal e pericial por parte da apelante, com a finalidade de demonstrar a culpa exclusiva do apelado pelo acidente e a extensão dos danos sofridos. 6. R. Sentença que julgou improcedentes as pretensões autorais de forma antecipada. 7. Cerceamento de defesa configurado. RECURSO PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1005523-63.2022.8.26.0047; Relator (a): Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Assis – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/05/2023; Data de Registro: 19/05/2023).
Já no último caso, em que pese o transporte de cortesia tenha ficado bem caracterizado, para os julgadores não ficou evidenciada a culpa grave do condutor para a ocorrência do acidente. A indenização da pessoa que estava no banco do carona foi negada.
ACIDENTE DE TRÂNSITO – CAPOTAMENTO DE VEÍCULO EM RODOVIA APÓS O CONDUTOR PERDER O CONTROLE DA DIREÇÃO AO DESVIAR DE RESSOLAGEM DE PNEU DE CAMINHÃO QUE ESTAVA NA PISTA DE ROLAMENTO – CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCORRÊNCIA – ELEMENTOS DE CONVICÇÃO CONSTANTES DOS AUTOS QUE EVIDENCIAM TRANSPORTE DE SIMPLES CORTESIA – FALTA DE ELEMENTOS CIRCUNSTANCIAIS ENSEJADORES DA CARACTERIZAÇÃO DE CULPA GRAVE OU DOLO DO CONDUTOR DO VEÍCULO – INCIDÊNCIA DA SÚMULA 145 DO STJ – INDENIZAÇÃO INDEVIDA – RECONHECIMENTO – IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJSP; Apelação Cível 0000753-79.2009.8.26.0506; Relator (a): Andrade Neto; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2023; Data de Registro: 14/09/2023)
Portanto, é bom estar atento aos deveres de cuidado redobrado para quem dá carona a alguém, afinal, a responsabilidade civil pode nascer não só de atos do momento do acidente, como também de tudo o que o circundou, a exemplo da falta de manutenção adequada dos veículos e da permissão para que as pessoas permaneçam sem o cinto de segurança.
Na prática, como todo caso, os detalhes e desdobramentos merecem o exame acurado de um advogado de confiança, capaz de identificar a caracterização dos elementos aptos a indicar a responsabilização do condutor ou o seu afastamento.
Entre em contato conosco!