Da boa-fé advêm a lealdade, a correção, a confiança, o limite, o respeito e a cooperação que devem estar presentes nas relações sociais. Em diferentes contextos e contratações, sejam elas escritas ou verbais, existem deveres de condutas inerentes ao negócio firmado ou até mesmo ao desfazimento do negócio.
A boa-fé é tão importante para o Direito que atua como principal guia no exame de condutas e conflitos levados ao Judiciário, nas mais variadas áreas do relacionamento entre as pessoas.
O Código Civil prevê em seu artigo 422 que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
O Código de Defesa do Consumidor, ao trazer os princípios basilares nos quais a política nacional das relações de consumo se funda, de acordo com o artigo 4º, III, chama a atenção para o atendimento à boa-fé e ao equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Vale trazer os ensinamentos do jurista De Plácido e Silva:
“Sempre se teve boa-fé no sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato, certa de que está agindo na conformidade do direito, consequentemente, protegida pelos preceitos legais. Dessa forma, quem age de boa-fé está capacitado de que o ato de que é agente, ou do qual participa, está sendo executado dentro do justo e do leal[1]”.
Logo, na vida cotidiana, é importante atentarmos para os deveres não expressos (ou não combinados) decorrentes de contratações complexas, medianas, simples ou verbais. Referidos deveres são inerentes aos negócios e evidentes para o chamado homem médio (aquele tido pelo Direito como sendo a referência de conduta esperada, nem tão extraordinário, nem tão simples).
Da contratação complexa de M&A (sigla em inglês para Mergers and Acquisitions, que em português significa Fusões e Aquisições), envolvendo milhões de reais, à resolução do contrato de telefonia ou mesmo à quebra de ajuste verbal, existem obrigações que pesam e, se não observadas, são capazes de provocar significativo prejuízo e desrespeito à justa expectativa de uma parte, fazendo nascer o dever de indenizar.
Geralmente os contratos de M&A são complexos e nascem da existência de longas tratativas e contratações, como a carta de intenções, troca de informações e dados importantes, fazendo com que as partes se vinculem ao dever de sigilo desde o início.
Inclusive as negociações tendem a se concentrar na descrição dos deveres anteriores à assinatura da compra e venda e durante a execução do contrato, dispensando para o momento pós-venda as obrigações de não concorrência, sigilo e não aliciamento, de modo geral.
Partindo do pressuposto de que a boa-fé vai além de um dever legal, expressamente existente no Código Civil e de que constitui verdadeiro pilar na busca pelo cumprimento do objetivo contratual, como também a realização dos interesses das partes, na prática, qualquer comportamento contraditório à lealdade, confiança e justa expectativa da outra parte poderá ser apto a gerar o dever de indenização em favor da parte prejudicada.
Portanto, mesmo após a conclusão da transação, com o pagamento total das parcelas e desvinculação imediata entre as partes, ainda assim permanecem os deveres inerentes ao bom comportamento. Não se pode lançar mão de ofensas, críticas, agindo a parte a seu bel-prazer em desfavor da contraparte.
Esses deveres inerentes precisam estar expressos?
Não! Todavia, é recomendado que as partes, assessoradas por seus advogados, reflitam sobre quais comportamentos são esperados para o momento pós-transação e, de fato, mereçam estar expressamente definidos no contrato, estipulando regras que fujam do óbvio e que façam total diferença para aquele contexto, a fim de evitar comportamentos tidos como inapropriados.
Conforme vimos, não são apenas as contratações complexas que trazem deveres importantes que acompanham a boa-fé. Nas relações de consumo, a responsabilidade pós-contratual também está prevista e tem sido reconhecida pelos juízes.
A título de exemplo, trazemos como referência uma decisão judicial recente proferida na Comarca de Ribeirão Preto[2], na qual se decidiu conflito de consumo surgido após o pedido de cancelamento do plano de telefonia. O juiz reconheceu o significativo transtorno ao qual o consumidor foi submetido após pedir o fim da contratação e ressaltou o descaso da empresa de telefonia e a violação ao dever de cooperação e informação da boa-fé imposto na fase pós-contratual.
Também em sentença recente, um juiz de Peruíbe[3] ao se deparar com conflito envolvendo a compra e venda de veículo e a alegação de ausência de pagamento da última parcela foi sensível o bastante para perceber a intenção das partes no contrato verbal e na exigência de “um padrão minimamente ético que deve se estender mesmo após o término da relação contratual”.
Conclusão
Embora as relações humanas estejam a cada dia mais complexas, tecnológicas e instantâneas, o guia principal será sempre a boa-fé, não importando o contexto na qual se formem e se desenvolvem. Nas relações complexas e reguladas por uma série de siglas, traduções e obrigações, a boa-fé deverá estar presente, com os deveres específicos a ela inerentes. Nas relações de consumo e relações em geral o mesmo entendimento se aplica. É a busca incessante pelo equilíbrio e manutenção da ordem social.
[1] Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva – Editora Forense – 2001
[2] TJ/SP, Processo nº 1001221-06.2021.8.26.0506, 22/03/2022, 7ª Vara Cível de Ribeirão Preto
[3] TJ/SP. Processo nº 1003735-30.2021.8.26.0441 – 08/03/2022 – 2ª Vara do Foro de Peruíbe
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