Recentemente fomos consultados por uma cliente, artista plástica, sobre a possibilidade de instalar seu ateliê em seu apartamento localizado em um condomínio residencial. O objetivo da nossa consulente era pintar seus quadros no mesmo local em que reside, sem que tal atividade provocasse qualquer alteração na rotina condominial.
A necessidade da consulta surgiu quando o síndico a informou acerca da proibição da prática de qualquer tipo de atividade profissional, uma vez que, a convenção do condomínio prevê que a destinação do edifício é estritamente residencial.
Será isso mesmo?
Para entender melhor o assunto, vale começar verificando o que diz a lei.
Os artigos 1335, inciso I, e 1336, inciso IV, do Código Civil dispõem sobre os direitos e deveres dos condôminos:
Art. 1.335. São direitos do condômino:
I – usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;
Art. 1336. São deveres do condômino:
IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.”
Nota-se, portanto, que no microssistema de um condomínio predomina a máxima que existe para as relações sociais, em geral, qual seja: a regra é a liberdade, porém, sempre pautada por limitações fundamentadas e reguladas com vistas à observância de algo maior.
Por “algo maior” há que se entender, justamente, a manutenção da paz e harmonia entre as pessoas, tal como se espera na vida em condomínio.
Pois bem, no condomínio, como se pode ver, a legislação protege o sossego, a salubridade e a segurança da coletividade, valores que perfazem as premissas para a análise da consulta em questão, tanto de nossa parte, enquanto consultores, quanto por parte dos magistrados a quem cabe julgar os casos práticos sobre o assunto.
Como ocorre a flexibilização da proibição de trabalho constante da convenção de condomínios residenciais?
É possível o exercício de atividade profissional sem que isso desvirtue a finalidade residencial do condomínio?
Importante pontuar que toda edificação requer a previsão da destinação das suas unidades, conforme um dos requisitos do artigo 1.332, III, do Código Civil. A destinação pode ser residencial, comercial ou mista, tratando-se, portanto, de um assunto bastante sensível e relevante para o condomínio.
Analisando o disposto na lei sob a luz dos valores por ela protegidos, é possível verificar que, ainda que a convenção do condomínio seja expressa quanto à finalidade exclusivamente residencial da edificação, na prática se admite o uso misto, com o exercício profissional, desde que respeitados o sossego, a salubridade e a segurança do condomínio. Necessário, ainda, que não haja impacto na rotina da coletividade, tampouco uso que possa gerar desgaste prematuro ou gasto excessivo dos equipamentos que guarnecem as áreas comuns, onerando o condomínio desnecessariamente.
É o bom senso aliado ao regramento existente!
Em tempos de home office, caso prático é o profissional liberal, como advogado, costureira, professor particular ou até mesmo quem prepara comida por encomenda ou faça artesanato, desde que o façam de forma a não impactar na rotina do condomínio. Por exemplo, receber poucos clientes, não provocar grande circulação de pessoas, não impactar o funcionamento do elevador, não contratar funcionários, não afetar a segurança e não instalar uma estrutura industrial (como no caso do preparo de refeições).
Também não é aceitável sobrecarregar os serviços disponíveis no condomínio ou lhe gerar custos, como no caso de utilizar o gás comum para fazer refeições para fora, lavar roupas sem que a água esteja individualizada, exceder o uso de elevador com entregas de produtos e/ou circulação de visitantes, enfim, gerar transtornos e custos em razão do excesso no uso dos bens comuns.
Em resumo, algumas atividades profissionais vêm sendo permitidas dentro de condomínios estritamente residenciais, a despeito da proibição da convenção condominial, sem que a Justiça considere haver desvirtuamento da finalidade do condomínio, desde que respeitadas as condições acima indicadas, ou seja, sua realização deve ser de modo mais tímido e sem uma verdadeira linha de produção industrial.
Esse é o entendimento defendido na maioria das decisões judiciais dos tribunais brasileiros a saber:
“Pretensão de expulsão de locatários de apartamento, pela utilização empresarial da unidade e por conduta antissocial. Sentença de improcedência. Redistribuído por força da Resolução 737/2016 e Portaria nº 02/2017. Apela o autor sustentando descumprimento da convenção de condomínio que autoriza o uso apenas como moradia; e conduta antissocial na utilização das vagas de garagem e no convívio com funcionários e condôminos. Descabimento. Restrição inserida na convenção. Aplicação com temperamento, levando em conta seu escopo de evitar o desassossego e insegurança dos demais condôminos, como também sobrecarga dos serviços disponíveis no prédio. Inteligência do art. 1.335, I, e 1.336, IV, do CC. Perícia aponta que o escritório de consultoria instalado no apartamento possui atividade intelectual. Ausente prova de que interfira no regular funcionamento do condomínio. Inexistentes elementos de convicção que identifiquem conduta antissocial dos réus locatários. Apelante não inovou o que já havia sido exposto nos autos e rebatido na sentença. Motivação da sentença adotada como fundamentação do julgamento em segundo grau. Adoção do art. 252 do RITJ. Recurso improvido. (TJSP, Apelação 1002991-32.2014.8.26.0004, COMARCA: São Paulo, Relator James Siano, d.j.:27/02/2018)”
“APELAÇÃO. AÇÃO VISANDO AO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER C/C DECLARATÓRIA E INEXIGIBILIDADE DE MULTA. Sentença de procedência do pedido. Apelação do Condomínio demandado. Regulamento Interno que proíbe a manutenção de mais de um animal por unidade autônoma. Exercício do direito de propriedade não deve ser obstado por convenção ou regulamento interno, salvo se causar risco ou incômodo aos demais moradores, o que não ficou comprovado no caso concreto. Inexistente motivo para admitir a limitação. Sentença de procedência do pedido mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (…) “à semelhança de atividades como a ministração de aulas particulares ou a confecção de alimentos por encomenda, a hospedagem de cães, desde que levada e efeito sem grande aparato, sem o auxílio de funcionários e sem portas abertas ao público em geral (o contato se dá via aplicativos e, ao que é dado inferir, o animal é apanhado e restituído na portaria), é inapta a subverter a destinação residencial do imóvel, convertendo-o em ponto comercial”.(TJSP, Apelação Cível nº 1049567-50.2018.8.26.0002, da Comarca de São Paulo Relatora Carmem Lúcia da Silva, d.j.: 12/11/2021)”
Opinião legal sobre a consulta
Voltando à análise das circunstâncias do caso concreto exposto na consulta formulada pela cliente, artista plástica, em consonância com as considerações acima, é fato que um ateliê destinado à pintura de quadros exclusivamente por ela, mantendo-se a residência como finalidade principal, não traz qualquer prejuízo à rotina do condomínio, sendo absolutamente tolerável.
Portanto, é importante ponderar os impactos da atividade profissional no condomínio residencial, evitando-se qualquer abusividade por parte da norma condominial.
Falando nisso…
Por outro lado, para aquele que exerce as atividades profissionais em sistema de home office, é importante não perder de vista que se encontra instalado em um ambiente com a finalidade estritamente residencial, com a possível presença de crianças e circulação de animais. Logo, não lhe será razoável exigir silêncio absoluto dentro deste ambiente, já que a exceção estará justamente do lado de quem exerce as suas atividades profissionais no lar.
Lembrete final
Em 2019, antes mesmo de pensarmos em pandemia da Covid-19, que acabou por trazer novas rotinas à sociedade, dentre elas, a popularização do home office, esse tema acabou sendo objeto de um de nossos artigos e se encontra disponível neste link.
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