A triste e prematura partida da cantora Marília Mendonça evidenciou não só a sua importância no cenário musical do Brasil, como também escancarou a sua estrondosa presença digital:
Para os familiares e fãs, é um alento poder acessar os canais alimentados por ela regularmente, como um diário. À história da música popular brasileira, sem dúvida, um farto material para a memória da ilustre cantora que bateu recordes.
Não se discute a importância da manutenção do perfil da artista, assim como ocorreu com o perfil do cantor sertanejo Cristiano Araújo, falecido em acidente de carro, em 2015. Seu perfil virou memorial e os fãs podem acessar o conteúdo postado por ele em vida.
Saindo dos holofotes e indo para o cenário da maioria das pessoas, temos os perfis de usuários não famosos e que, muitas vezes, são abertos apenas para os amigos.
Nesses casos, como ficam as memórias e os registros após o falecimento?
Não há dúvida de que famosa ou não, quando uma pessoa querida falece, acessar suas redes sociais é uma forma de resgatar as boas lembranças. Rever vídeos, áudios, textos e fotos preenche um pouco do vazio que a ausência física deixa, trazendo certo conforto ao coração.
Será que os sucessores do falecido têm direito de administrar a conta como se fossem os usuários?
Primeiramente, é importante compreender que para um bem ser considerado herança, é preciso que tenha valor econômico para compor o acervo patrimonial que será transmitido aos herdeiros. Podemos citar o exemplo das contas bancárias, investimentos, inclusive criptomoedas, imóveis, joias e carros.
Já as chamadas heranças digitais ainda aguardam norma legal que as disciplinem, sendo motivo de muitas controvérsias no Direito das Sucessões. Podemos pensar nos arquivos nas “nuvens” e plataformas digitais, desde que possuam valor econômico.
Mas então, qual é a natureza do perfil da rede social?
Pois bem, como o assunto é relativamente novo e não foi tratado no Marco Civil da Internet, tampouco na Lei Geral de Proteção de Dados, a discussão se amplia na doutrina e jurisprudência, sobretudo no que se refere ao aspecto patrimonial da herança e à verificação se determinado perfil de rede social tem valor patrimonial ou não, a depender do seu uso, podendo, com isso, ser classificado como herança digital.
O fato é que as situações começaram a chegar ao Judiciário que já dá sinais do que podemos esperar.
Para ilustrar, citamos uma ação judicial envolvendo o Facebook, cuja apelação da mãe de usuária falecida foi denegada por unanimidade pelos julgadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Em primeira instância, o caso foi decidido, em 2020, pelo Juiz de Direito Fernando José Cúnico, da 12ª Vara Cível de São Paulo[3]. O julgador negou à mãe da usuária a pretensão para que pudesse utilizar o perfil do Facebook da sua filha falecida, que foi excluído pela rede social após nove meses da morte.
O fundamento da decisão foi a ausência de falha na prestação dos serviços pelo Facebook e a proteção da autonomia da vontade, pois a exclusão do perfil ocorreu em observância às regras de uso do Facebook. O usuário pode optar pela sua exclusão em caso de falecimento, como teria ocorrido no caso em questão, segundo entendeu o magistrado.
Ao criar sua conta no Facebook, o usuário tem algumas opções de escolha do destino para seu perfil após seu falecimento:
Com a decisão negativa na primeira instância, a mãe partiu para o tribunal. Recorreu ao colegiado para alterar o entendimento e obter a autorização de acesso à página pessoal da filha, utilizando normalmente o login e senha desta.
Negativa confirmada e fundamento ampliado. Segundo os julgadores, além da consagração da autonomia da vontade e dos termos de serviço do Facebook, o direito ao uso e acesso regular da página pessoal é personalíssimo, não se transmitindo por herança, pois ausente conteúdo patrimonial.
Em outras palavras, a privacidade e a identidade do usuário são direitos pessoais e intransmissíveis, extinguindo-se com a morte.
Veja-se, portanto, que a mãe da usuária falecida não conseguiu alterar a solução do caso também em razão do reconhecimento da ausência do aspecto patrimonial do direito ao acesso ao perfil da filha.
Outra situação merece atenção: o direito à preservação da memória!
Ainda em 2020, o judiciário paulista se debruçou sobre o julgamento de caso[4] em que familiares pleitearam a recuperação dos perfis das redes sociais (Facebook e Instagram) de ente falecido, que teriam sofrido violação por terceiros, o que acabou por comprometer a segurança e exatidão das informações existentes nas páginas.
No geral, os familiares tiveram êxito no rumo que o processo tomou, tendo chegado ao tribunal que, em 2021, além de confirmar a sentença, deferiu o pedido para que o Facebook restaurasse os perfis ao estado em que se encontravam antes das invasões.
Para o colegiado, a restauração dos perfis alterados ao estado anterior à invasão “é o direito à memória, ao não esquecimento, à fidelidade das informações que existiam nos aplicativos e foram modificadas à revelia daqueles que detêm o interesse e a legitimidade para buscar a preservação do conteúdo.” Como percebemos, se por um lado, conforme demonstrado no primeiro caso exposto, não é possível a transmissão dos direitos da personalidade, por outro, no segundo, evidenciou-se que aos herdeiros é garantido o direito de tutela jurídica dos interesses e reflexos do direito da personalidade do falecido.
[1] https://extra.globo.com/famosos/marilia-mendonca-em-numeros-live-recordista-14-bilhoes-de-cliques-no-youtube-mais-25266785.html
[2] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/11/06/perfil-de-marilia-mendonca-ultrapassa-40-milhoes-de-seguidores-com-comocao-apos-morte.ghtml
[3] TJSP, Processo 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator Francisco Casconi, d.j. 09/03/2021.
[4] TJSP, Processo 1074848-34.2020.8.26.0100, Relator Ronnie Herbert Barros Soares, d.j. 31/08/2021
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