Em 2021, à época do falecimento da cantora Marília Mendonça, escrevemos artigo tratando a respeito da herança digital e o acesso por parte dos herdeiros ao conteúdo deixado pelo ente falecido.
As decisões judiciais proferidas naquele tempo caminhavam para o indeferimento dos pedidos dos herdeiros. Com isso, a autorização para acesso judicial ao patrimônio digital do falecido era negada, tendo em vista certo conflito de interesses entre o direito à preservação da privacidade versus a identidade do usuário, os quais são direitos pessoais e intransmissíveis, extinguindo-se com a morte. Portanto, o direito ao uso e acesso regular da página pessoal é personalíssimo, não se transmitindo por herança, pois ausente conteúdo patrimonial.
Poucos anos se passaram e este entendimento houve por bem ser modificado, mostrando como o Direito e os juristas são dinâmicos, tendendo a se adaptar aos anseios e necessidades de uma sociedade cada vez mais digital, haja vista que ainda não existem leis a respeito.
Uma das primeiras mudanças partiu do Conselho da Justiça Federal (CJF), que em 2022 realizou a IX Jornada de Direito Civil e dentre os temas discutidos, aprovou o Enunciado nº 687:
O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo.
Esses enunciados não têm força de lei para obrigar os juízes, entretanto, servem de orientação com caráter doutrinário e têm força persuasiva de cunho técnico-jurídico, pois, foram amplamente debatidos.
Como justificativa para redação do enunciado, o Conselho da Justiça Federal apresentou os seguintes fundamentos:
A Constituição Federal de 1988 garante o direito de herança como fundamental do cidadão brasileiro (art. 5º, XXX). De outra parte, a revolução tecnológica desenvolvida a partir da internet, das interações em plataformas digitais e redes sociais, além do tráfego de relações oriundo dessas operações conduziram à atribuição de valor econômico a essa nova espécie de patrimônio, denominado “digital”. São exemplos dessa novel categoria: direitos autorais sobre conteúdos digitais; perfis, publicações e interações em redes sociais e plataformas digitais com potencial valor econômico; arquivos em nuvem, contas de e-mail; sítios eletrônicos, bitcoins etc. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro não pode recusar tutela jurídica a essa modalidade patrimonial que, ainda que não regulada especificamente por lei (há projeto em tramitação na Câmara dos Deputados: PL n. 1.689/2021) – extrai força normativa da própria Constituição Federal, cabendo aos operadores do direito promover a adequada proteção jurídica dos bens e interesses dos titulares e dos respectivos sucessores, atribuindo-lhes sentido jurídico e econômico nas sucessões legítimas e testamentárias (e até mesmo por meio de codicilos, nos casos de pequena monta). Nestas últimas, em observância ao postulado da autonomia da vontade, devem ser respeitadas, inclusive, as disposições de última vontade de viés negativo, isto é, aquelas que determinem a eliminação total dos dados e informações titularizados pelo de cujus.
Pois bem, diante dessas orientações e do aperfeiçoamento no entendimento, o Poder Judiciário continua sendo provocado a se manifestar sobre casos concretos. Recentemente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reformou a decisão de um magistrado de primeira instância[1], que havia decidido preservar os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade de quem havia partido.
No entender do TJSP, que dentre os seus fundamentos se reportou ao Enunciado nº 687 do CJF, não se verificou justificativa para impedir o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida.
Além disso, observou não haver violação a eventual direito da personalidade da falecida, notadamente pela ausência de disposição específica contrária ao acesso aos seus dados digitais pela família, isto é, que a filha não deixou qualquer expressão de vontade que impedisse a familiar de acessar esse tipo de conteúdo.
Assim, os desembargadores determinaram que a Apple realizasse a transferência de acesso do Apple ID da filha falecida à mãe por meio de um alvará judicial.
Enquanto advogados, nossos votos são que o Direito e seus operadores continuem no caminho da constante adaptação às novas necessidades desta era cada vez mais digital.
[1] Processo: 1017379-58.2022.8.26.0068
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